Artes do desvio: Gregório de Matos e o espetáculo Boca a Boca)

João Sanches (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)

Resumo

   A partir da noção de desvio, formulada pelo teórico e dramaturgo francês Jean-Pierre Sarrazac, este artigo discute aspectos do espetáculo “Boca a Boca: um solo para Gregório”. A montagem aborda a vida e obra do poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696), conhecido como Boca do Inferno e considerado atualmente o iniciador da literatura brasileira. Com roteiro e encenação de João Sanches, “Boca a Boca: um solo para Gregório” apresenta uma estrutura híbrida – mistura de “show de rock”, recital performativo e monólogo dramático – que, além de abordar a trajetória e a produção de um poeta considerado maldito ainda hoje, também apresenta em sua estrutura espetacular procedimentos de composição dramatúrgica e cênica que se desviam de poéticas tradicionais.

Introdução
Eu sou aquele, que os passados anos
cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os decantei bastantemente,
canto segunda vez na mesma lira
o mesmo assunto em plectro diferente
(MATOS, 1990, p. 366).

     Gregório de Matos é considerado o primeiro poeta do Brasil, o iniciador da literatura brasileira. Nasceu na Bahia, acredita-se que na cidade de Salvador, em 20 de dezembro de 1636 (ou em 1633, ou em março de 1623)2 no período do Brasil Colonial. De origem abastada, o poeta realizou seus primeiros estudos com os jesuítas até que, em 1650, mudou-se para Portugal, onde se graduou em Direito no ano de 1661. Depois que retornou ao Brasil em 1681, com aproximadamente 45 anos, Gregório de Matos escreveu a maior parte de sua obra (pelo menos do que chegou aos dias atuais). Na Bahia, por conta de suas poesias satíricas, foi perseguido, preso e acabou sendo enviado para exílio em Angola, sob ordem de João de Alencastro, governador da Bahia entre 1694 e 1702.
     A estadia de Gregório na África não durou muito, o poeta ajudou a pacificar um motim militar em Angola e, por isso, conseguiu ser perdoado e receber a permissão de voltar ao Brasil, mas com a condição de que morasse em Recife e nunca mais voltasse à Bahia, oque de fato aconteceu. Gregório de Matos morreu em Recife no ano de 1696 e permanece, de certa forma, exilado e maldito até hoje – na medida em que os aspectos polêmicos de sua obra continuam a despertar incômodo, ou até mesmo repulsa, sendo abordados muitas vezes de maneira marginal pelos estudos acadêmicos e pelo poder público. O reconhecimento de Gregório de Matos, o primeiro poeta do Brasil, é pequeno se comparado, por exemplo, com o lugar que o poeta Castro Alves ocupa no imaginário brasileiro e baiano: a praça que leva o nome de Castro Alves em Salvador, o monumento em sua homenagem na referida praça e o Teatro Castro Alves, o maior e mais sofisticado equipamento cultural do estado da Bahia, sãoapenas alguns exemplos da diferença no tratamento dispensado aos artistas.
     Em coluna publicada no jornal Correio, em 13 de junho de 2015, mês em que o Teatro Gregório de Matos foi reinaugurado pela prefeitura de Salvador (depois de ficar uma longa temporada fechado), a escritora e pesquisadora Aninha Franco destacou essa diferença entre os poetas:

Gregório é o primeiro poeta brasileiro, com obra imune ao envelhecimento. Poeta que a Colônia combateu durante a colonização, Império e República. Talvez nenhum outro Artista – e os Artistas republicanos brasileiros prosseguem combatidos – foi tão atacado pelo sistema quanto Gregório de Mattos (1636 a 1695), sempre preterido ao bom-mocista Castro Alves (1847 a 1871) de porte europeu. O Teatro Castro Alves (1958), estadual, é – ou foi – o símbolo da ostentação baiana. O Gregório de Mattos (1972), municipal, esteve quase sempre fechado para reformas. Castro Alves teve sua primeira obra, Espumas Flutuantes (1870), publicada aos 23 anos, e a primeira edição da obra completa publicada em 1921. Gregório de Mattos esperou 237 anos para ter sua obra publicada pela Academia Brasileira de Letras (1933), sem a
criação satírica e 269 anos para ter sua obra completa publicada,
espantosamente contemporânea. Os responsáveis pela Obra Completa de
Gregório (1969), James Amado e Luiz Henrique Dias Tavares, a mais
oportuna que se fez na Bahia nos anos de chumbo, enfrentaram
adversidades. Luiz Henrique foi preso (FRANCO, 2015).

Gregório de Matos não foi publicado enquanto vivia, a imprensa era proibida na Colônia. Todo o ódio que lhe foi dirigido veio de algumas cópias manuscritas de textos, alguns, inclusive, atribuídos erroneamente ao poeta. Foi assim, no boca a boca, no cópia a cópia, que sua produção conseguiu ser censurada, perseguida, condenada e, apesar de tudo, sobreviver. Quase trezentos anos se passaram até que a obra de Gregório de Matos fosse completamente publicada e sua importância e protagonismo fossem reconhecidos. É preciso destacar o poder dessas criações que, apesar de todas as imposições sofridas, resistiram à censura durante séculos, por meio das mãos e bocas de seus leitores e admiradores. 

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